Textos

Nomes do Mato – Raul Leal


“Nomes do mato” faz referência aos nomes que os indígenas eram obrigados a abandonar quando eram batizados. Esses mesmos indígenas que perdiam seus nomes de família, sua referência como seres humanos no mundo, foram responsáveis por nos deixar a maior parte dos nomes das plantas e animais existentes no Brasil, nossa toponímia também é quase toda de origem indígena. Ao qualificar esses nomes indígenas como nomes do mato, fica bem claro o caráter pejorativo que sempre foi associado a tudo que era proveniente de nossas matas, basta lembrar que alguns anos atrás, plantas como bromélias, certas orquídeas e bananeiras decorativas eram vistas como plantas do mato, coisas sem valor. Hoje em dia essas espécies movimentam um próspero mercado de plantas decorativas que são exportadas para todo o mundo. Quando se vai remover a mata de alguma propriedade diz-se que a área vai ser limpa, como se a floresta fosse sinônimo de sujeira.

Nessa exposição os “Nomes do mato” são animais e plantas que ainda resistem em nossas matas, lutando para sobreviver em meio aos ataques sofridos pelo meio ambiente, através dos anos. Essa série de trabalhos teve início quando decidi utilizar a paisagem do interior como referência. Comecei a fotografar o interior do estado do Rio e me deparei com uma situação estranha, havia muita seca, muitas árvores mortas e muito pouca mata nativa. Comecei a pesquisar sobre o assunto e descobri que o Norte - Noroeste fluminense, parte de Minas e Espírito Santo estão vivendo um processo de desertificação. Desertificação é a degradação da terra por uma combinação de fatores climáticos e humanos. São três fatores que se conjugam neste processo, o primeiro é o desmatamento, o interior do estado do Rio originalmente possuía 100% de mata atlântica nativa, a mata virgem dos nossos avós, com o desmatamento para lavoura de café, criação de pasto e comércio de madeira chegamos a inacreditáveis 10% da mata original. Segundo as pesquisas a mata atlântica é um ecossistema que começou a se formar há 500 milhões de anos, em menos de cem anos nós conseguimos destruir 90% dessas matas que estavam aqui muito antes dos índios. O segundo fator que vem atrelado ao desmatamento são as queimadas que acabam com o resto de nutrientes da terra. O terceiro é o manejo equivocado do solo, a terra precisa da mata para ter uma reserva de matéria orgânica e se tornar produtiva, sem esse adubo natural que vem da decomposição de folhas e troncos, nem capim consegue vegetar na terra vermelha que se torna árida.

Mas o que tem isso a ver com arte? Os trabalhos que eu estou apresentando aqui foram realizados a partir da observação da nossa paisagem e dessas modificações. Utilizei madeira, terra e fogo para trabalhar com imagens de animais e plantas que ainda resistem nesses restos de mata, são animais que fazem parte da memória de todos nós. Mostro também um conjunto de fotografias e aquarelas que apresentam áreas devastadas e pequenas plantas que sobrevivem nesses clarões de terra vermelha e três pares de desenhos em grafite onde contraponho uma espécie de negativo/positivo de animais, baseados nos desenhos dos artistas viajantes que andavam pelo interior catalogando nossa riqueza natural. Os nomes do mato são a nossa riqueza, o verde ocupa a maior parte da nossa bandeira, esse verde que precisa tanto ser cuidado e preservado por ser fonte de tudo que nós conhecemos como Brasil.

http://rauleal.blogspot.com/2020/06/nomes-do-mato.html



Nada acabará, nada ainda começou - Isabel Sanson Portella


“Tenho tudo para ouvir e ver.
Ainda não sei nada. Leio livros para aprender.
Estou sempre apressada. Sou muito mexida.
Um dia quero uma coisa, no outro quero tudo.
Sofro de um problema de sossego.
Não sei o que é estar sossegada.
Mais tarde corrijo.”


O paraiso são os outros - Walter Hugo Mãe



Ao pensar a exposição de Raul Leal para a Galeria do Lago me deparei com os versos e músicas que um dia soaram pelos salões do palácio do Catete. Os banquetes, saraus e bailes que ali reuniram a elite carioca do inicio do século XX estavam, certamente, impregnados do espírito e das ideias vigentes na sociedade da época. Preconceitos e ousadias, estranhamentos e deslocamentos acompanhavam as inovações apresentadas. Movimentos de exclusão e segregação sempre surgiram em todos os tipos de sociedade, dificultando ou impedindo os caminhos da cultura popular. Dessa forma, questões envolvendo o legado musical brasileiro despertam os sentidos principalmente para situações onde construção e destruição se opõem. Nada acabará! Nada ainda começou! Passam-se os séculos e nada acabou. Continua o preconceito, a proibição, a exclusão. Será que nada ainda começou? Será que expressões populares autênticas ainda vão continuar a ser rotuladas, consideradas inadequadas ou impróprias?



A música faz parte do universo de Raul Leal, artista-pianista que escolheu Nair de Teffé e a sua ousadia no inicio do século XX como fio condutor para a exposição de sua arte.

Levantar questões, abrir caminhos para se pensar estranhamentos e exclusões ao longo dos séculos são propostas desse artista que trouxe para a Galeria do Lago, nos jardins do Palácio do Catete, obras que remetem ao mundo da música e suas expressões.

Catulo da Paixão Cearense e Chiquinha Gonzaga nos salões do Palácio do Catete nos primeiros anos do século passado: “expressão chula da nossa cultura”!

Ernesto Nazareth para estudantes da rede pública, século XXI: “achacado, rejeitado”!

Show “Tecnomacumba” em evento gospel, século XXI: “proibido”!

O que torna cada uma dessas situações um momento de reflexão? Que paralelos existem entre elas e como podemos criar um novo começo a partir desses entendimentos? Raul Leal coloca sua arte para indagar. E cada espectador irá encontrar a sua resposta. Cada um que parar diante das propostas do artista vai saber que a música, como arte maior, está acima de preconceitos e proibições. E então tudo irá começar!!! Novas respostas virão, novas atitudes, novos posicionamentos! Um recomeço com mais liberdade!

https://issuu.com/raulleal/docs/nada_acabar____nada_ainda_come__ou



Ilhas - Daniela Name



Sentia-se muito jovem e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma navalha através de tudo; e ao mesmo tempo ficava de fora, olhando. Tinha a perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um dia que fosse. [1].

É Mrs. Dalloway quem nos faz o convite para navegar pelas Ilhas de Raul Leal. Virginia Woolf inventou a personagem em 1925: socialite muito bem casada para os padrões de sua época, Clarissa Dalloway vivencia os incertos e assustadores anos do entre-guerras. O livro a acompanha na complexa tarefa de ir às compras. Ela circula pelas ruas de Londres escolhendo flores e procurando os ingredientes que faltam para um jantar formal em sua casa. Alterna estados de atenção: o foco na lista dos afazeres de uma boa esposa a mantém presa ao chão e ao movimento das ruas, fazendo-a constatar uma terrível solidão; já a entrada em um labiríntico estado de devaneio possibilita que a personagem e seu leitor devassem, juntos, alguns flashes do passado e de um possível futuro. Como numa ilha de edição, a memória permite retrocessos e avanços. Lembrar pode ser projetar ou se arrepender. Quando entra nesse estado de suspensão, pairando acima da rotina, Mrs. Dalloway faz furos randômicos na gaiola que a protege e a aprisiona, vivendo experiências que ultrapassam o congelamento superficial do presente.

E se Mrs. Dalloway fizesse suas compras nas paisagens pintadas por Raul Leal? Para início de conversa, ela não estaria nas ruas, mas em um dos ambientes artificiais que o artista recria a partir de fotos que tirou em shoppings do Brasil e de outros países. Como defende Zygmunt Bauman, os shoppings pertencem a um grupo de prisões voluntárias que temos criado. O teórico polonês vem estudando a vida cada vez mais líquida que levamos e a fluidez de nossas relações, que nos impedem de cultivar vínculos. Ele agrupa os shoppings aos reality-shows e aos condomínios fechados e seus circuitos de segurança – criamos grades que nos anestesiam e nos vigiam. Outro tributário do panóptico de Foucault, Jonathan Crary tem se debruçado sobre a comunicação depois da internet, a conexão 24/7 – 24 horas, 7 dias por semana -, que batiza seu último livro. Não é difícil aproximar a teatralização dos selfies, os não-encontros e não-debates performáticos virtuais com o isolamento identificado por Bauman. A hiperconexão é mais uma prova da desconexão de nossos tempos. Buscamos os ambientes fechados e a virtualidade também por medo do outro, e em casos extremos este receio se transforma em ódio e desejo de exclusão.

Se Mrs. Dalloway saísse para as compras em um shopping, talvez se sentisse “diferenciada”, protegida “desta gente” periférica, divergente e ameaçadora, mas certamente perderia a noção do ambiente que a cerca. Não conseguiria sentir o passar das horas e nem as alterações meteorológicas. Não ouviria as britadeiras da obra ao lado, nem sentiria cheiro de grama cortada; não veria carros, nem o colorido espetáculo de guarda-chuvas abertos; não esbarraria em nada, dificilmente seria abordada por alguém. Teria, portanto, bem mais dificuldade para abrir clarões de devaneio e de memória na anestesia do presente.

O interesse de Raul Leal é perseguir esses clarões. Para transformar seu trabalho em para-raio de memórias, o artista encarna um Doutor Frankenstein digital, se apropriando das especificidades da arquitetura dos shoppings e reorganizando elementos a partir de uma lógica de sampler. Se na história da pintura há relações evidentes entre cor, forma e música, não deixa de ser interessante notar que a arte contemporânea aproximou artistas e DJs, que trabalham com processos de apropriação e resignificação.

Leal é um pintor-pianista que domina com destreza um dispositivo importante em nossos tempos: os programas de manipulação de imagens. E é importante assinalar como as operações realizadas nestes softwares são semelhantes às da memória. Há apagamentos, enxertos, contrastes e brilhos provocados por decisões externas à imagem, do mesmo modo que podemos reinventar nossa infância, ficcionando a importância de determinado parente, ou mesmo lembrando um episódio esquecido a partir de um evento atual – um choque, um êxito –, que serve como ferramenta prospectiva, fazendo com que aquela fatia de passado ultrapasse a membrana da consciência e venha à tona.

Os shoppings-monstros de Leal-Frankenstein são feitos de fragmentos de espaço e tempo muito distintos, uma arquitetura de memórias estilhaçadas. A sensação de quem olha para essas pinturas recentes do artista pode ser a de que se está diante de uma paisagem extraterrestre, atualização pop do sentimento de exílio e não-pertencimento destacado pelos pintores e compositores românticos, como Caspar David Friedrich e Chopin, respectivamente. Este estado romântico de desencaixe e de certa paralisia diante da hostilidade do mundo é um elemento importante para o entendimento das Ilhas que Leal nos apresenta.

Em uma primeira mirada, de longe, cada tela-ilha parece ter a estabilidade de um instante congelado: a tinta acrílica é trabalhada como uma superfície aparentemente lisa; figuras humanas e os cacos de vitrines, lustres e escadas rolantes que compõem essas ruínas contemporâneas são pintados como silhuetas monocromáticas, quase carimbos.

De perto, no entanto, cada trabalho revela seus artifícios: os escorridos e as imperfeições próprias do fazer pictórico são deixados aparentes, se comunicando diretamente com as imagens ramificadas, espécies de infiltrações que Leal insiste em acrescentar aos seus ambientes. Se na já antológica tela Splash, de David Hockney, o movimento da água espalhada pelo salto na piscina furava a superfície quase fotográfica da pintura, no trabalho de Leal estas rachaduras (na imagem e na fatura) revelam a instabilidade presente em seus interesses formais e temáticos. Com elas, o artista transforma os shoppings em anti-totens, procurando levar essa redoma asfixiante e opaca ao estado de bolha de sabão: cápsula ainda fechada, mas de uma transparência díspar, furta-cor, prestes a se desintegrar a partir do contato com o mundo das coisas vivas, heterogêneas e em movimento.

Por ser um pintor da solidão e da incomunicabilidade que nos assola, talvez não seja um acaso Leal se interessar tanto por silhuetas. Apesar de sua aparência monolítica, elas são uma imagem que contém seu negativo, apontam para um estado de ausência, para algo que lhes foi suprimido. De mãos dadas com Mrs. Dalloway e com Virginia Woolf – a escritora também foi como um pássaro de olhos furados, que cantou alto, mas não suportou sua gaiola -, o artista expõe a dor das faltas e nosso estado de naufrágio. Das Ilhas, manda mensagens na garrafa, sem saber ao certo em que cais e em que tempo elas vão ser lidas.

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[1] A tradução de Mrs. Dalloway neste texto e na conversa com Raul Leal é a de Mario Quintana para a editora Nova Fronteira. O poeta gaúcho entendia bem de gaiolas e dos furos que precisamos fazer nelas: “Eles passarão, eu passarinho”.

https://issuu.com/daniname/docs/raul_leal_texto_cr__tico_daniela_na



Imagens de um mundo em suspensão - Ivair Reinaldim



No século XIX, europeus viram-se encantados pelas xilogravuras coloridas japonesas, as ukiyo-ês, cuja expressão significa “retratos do mundo flutuante”. Essas estampas simbolizavam imagens do cotidiano, imobilizadas no corte incisivo da madeira, e talvez guardassem o espírito cambiante justamente naquilo que as caracterizava enquanto exemplares de crônicas visuais num dado contexto histórico. Cabe logo ressaltar, no entanto, que as pinturas de Raul Leal não possuem uma relação direta com tais gravuras, como o que ocorreu, por exemplo, com os impressionistas e pós-impressionistas. Se uma aproximação de fato puder ser estabelecida, a mesma encontra-se no modo como o ambiente urbano é representado nas proposições visuais do artista, uma vez que suas formas parecem estar em constante suspensão – ou num equilíbrio sutil, prestes a se desestabilizarem –, mergulhadas numa temporalidade lenta, fluida e movediça, o que em si reforça a ênfase literal sobre uma possível aparência flutuante das imagens que essas pinturas sustentam.

Raul Leal elimina qualquer aspecto efervescente das cenas que concebe, sejam elas ocorridas numa praça, praia, avenida ou shopping Center, espaços tradicionalmente relacionados à dinâmica dos encontros e à potência das ligações interpessoais. Particularidade da sua ampla produção pictórica encontra-se no fato de que essas séries de trabalhos representam cenas congeladas – muitas vezes desabitadas ou com pouca evidência de presença humana – em íntima relação com sua gênese: o índice fotográfico. O artista captura imagens, enquadra-as, elege-as em meio à miríade de possibilidades oferecidas nas suas diligências visuais por esses espaços de predileção. Em seguida manipula, depura, recorta, modifica os ‘códigos’ fotográficos através dos ‘códigos’ dos softwares de edição. As evidências que aproximariam a imagem de seu referente passam então a ser completamente atenuadas, transformadas em parâmetro idealizado de paisagem, em substrato conceitual para a realização de cada projeto de pintura. Nesse trabalho de edição, o que interessa a Raul Leal é que a cena representada passe a existir enquanto espaço pictórico, embora mantenha na fina espessura da tinta aquela bidimensionalidade característica da imagem fotográfica, seja na sua impressão sobre a superfície do papel, seja na exibição no monitor do computador.

Nessas pinturas de superfície, tão delgadas quanto a espessura da fotografia e a espessura da estampa, os campos um pouco mais densos de cores constituem o conjunto de fragmentos que dão forma às coisas – às vezes mais dependentes do referente, outras, completamente autônomas –, partes que se relacionam entre si, articulam-se de modo a constituir uma imagem maior, insinuando, de algum modo, a possibilidade de reconstrução da cena capturada. Juntas, essas ‘formas’ movem-se lentamente, deslizam sobre um ‘fundo’ movediço, ralo, em que o pigmento agora aquarelado escorre de modo fluido pela superfície da tela. São nestes procedimentos mais acidentais, pouco controlados, em contraste com a precisão e constância das partes em evidência, que se desvela uma temporalidade lenta, representando o caráter efêmero tanto das coisas em si quanto do modo como são apreendidas subjetivamente. Essas imagens reforçam a impressão de vida em suspensão, de um mundo à espera da confirmação de sua existência. Elas vivem na imanência de existir para além de sua mera condição visual.

https://issuu.com/banco.portfolios/docs/raul_leal





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