Textos

Um Caminho de Duas Mãos


Mais que configurar um duplo fluxo de deslocamento, um caminho de duas mãos é, sobretudo, uma possibilidade de encontro de entes que transitam em direções opostas. Este é o nexo de reflexão que nos importa para pensar esta exposição de Raul Leal: um lugar de encontro conosco, com sua obra e com o tema apresentado. Para esta mostra o artista debate os esgotamentos ambientais, notadamente uma ideia de paisagem consolidada no imaginário, ao menos desde o Romantismo, como um dos atributos de nossa “identidade nacional”. Apesar da retumbante paisagem e natureza – conceitos distintos entre si, mas aqui conectados –figurarem uma imagem quase idílica em nossas memórias, aqui presenciamos a face crua do estado atual em que se encontram os elementos naturais, fauna e flora.

Abordadas por artistas viajantes desde o século XVII, as paisagens e a “natureza” brasileira são elementos documentais que contaram um “Brasil” que o Brasil nunca chegou a conhecer efetivamente. Mesmo que as representações se debruçassem cientificamente sobre elementos reais, o objeto representado estava tão distante do observador da imagem, que mesmo o real operava como uma representação idealizada daquela paisagem, natureza, objeto.

Ao longo do tempo essas imagens foram um presença simbólica na construção daquilo que definiria identitariamente o nosso povo. Porém essa miragem de paisagem encontra-se clivada numa dupla possibilidade de reflexão. A primeira diz respeito ao minoramento e empobrecimento das áreas naturais resultantes dos processos contínuos de degradação e destruição dos bens naturais que compuseram não somente o imaginário de nossa produção artística e população, como também encorpou o rol das canções, poemas e citações sobre um Brasil feliz. A segunda, diz respeito ao afastamento progressivo, principalmente após o século XX, das populações rurais de seus espaços de vida originais em direção aos centros urbanos, compondo um relevante fluxo migratório – também muito abordado por nossa segunda geração de modernistas –.

Raul Leal nesta exposição, partindo deste ponto, apresenta o resultado de suas incursões por cidades do interior. Contudo, ao contrário do que foi cristalizado no repertório imagético, revela cenas de degradação e abandono. Vegetações e animais compondo a ruina do natural em imagens pirografadas e decalcadas sobre a porosidade da madeira crua. Dor e beleza encontram-se no aspecto sensível da existência material dos seres sujeitos ao fim. Ao proceder dessa maneira, expondo esses trabalhos, Raul inverte a lógica tradicional da representação da paisagem e assume uma postura crítica que aponta para os esgotamentos daquilo que nos constituiu, ainda que simbolicamente, como sociedade. Não é demasiado arriscado dizer que ao proceder deste modo, o artista destaca seu posicionamento político e desvela um libelo em favor do que o filósofo Emanuelle Coccia nomeia como a “vida sensível”, um nexo existencial que nos atrela ao natural e nos define a ele pertencentes.

Desta forma, Um Caminho De Duas Mãos, é apresentado para nós como um lugar de encontro. Assim como defendemos no início deste texto, aqui nos encontramos com os fluxos contrários numa prática de alteridade, podendo assim decidir que posicionamentos e pensamentos assumimos diante das constatações que fazemos. A vida que sobrepujou as imagens tradicionais encontra-se fragilizada e anuncia seus limites. Saímos desta exposição com muitas reflexões, encantamentos, alegrias e atenção redobradas. Pois, nada na natureza é tão sensível que anuncie seu fim imediato e nada é tão perene que fique para sempre.

Shannon Botelho 2023

Passeio Público


Uma contemplação daquilo que é vivo, das coisas diminutas, de tudo o que é facilmente ignorado e sobrepujado nas dinâmicas de uma grande metrópole, a não ser que sirva de ornamento para o deleite de uma aristocracia sedenta por uma ambientação que a leve pelo caminho norte do Atlântico.

Raul Leal investiga as espécies que habitaram e ainda habitam o Passeio Público desde sua inauguração, considerando principalmente a transformação realizada por Glaziou, que substitui as linhas retas de Valentim para evocar um selvagem controlado, projetando um romantismo em curvas sinuosas que trata como ornamento a fauna e a flora nativas e exóticas. No entanto, é justamente nos momentos de desatenção que a natureza reivindica sua agência e recusa as propostas decorativas e civilizatórias. Nos períodos de abandono, os bichos da mata atlântica retornam ao que um dia foi seu território e insistem em se manter viva e pulsante.

O fogo da pirografia retrata animais vivos e as cinzas vindas de queimadas criam em monotipias os bichos mortos por eletrocussão ou atropelamento. Sobre a madeira, Leal desenha um ciclo de vida e morte. Além das árvores, são rememorados os tapumes que um dia foram improvisados para substituir os gradis do Passeio no momento da inauguração do jardim de Glaziou, que contrastavam com a exuberância pretendida naquele momento.

Leal pleiteia a atenção para os frangos d’água, gambás, caxinguelês, sapos, cobras e outros seres nativos, encontrando a nobreza das vidas que são negligenciadas por não ornarem com as constantes idealizações de uma cidade cenográfica.

Carolina Rodrigues – Daniela Name – Paula de Oliveira Camargo

https://passeiopublico.teiacritica.com.br/raul-leal/

TERRA VERMELHA


O bioma natural das regiões Norte e Noroeste Fluminense, objeto de estudo e apreço de artistas viajantes que por aqui passaram entre os séculos XVI e XIX, distancia-se cada vez mais do ideário exuberante representado nas gravuras e litografias produzidas ao longo da história. O verde que antes preenchia as cenas que figuravam os livros de viagens destes artistas é, atualmente, invadido pelo tom vermelho causado pela aridez da terra local, evidência dos procedimentos extrativistas que ocasionam a má qualidade do solo, processos de erosão e secas prolongadas. Se o papel da paisagem na arte foi, outrora, compreendido como a representação do belo, do pitoresco ou do exótico, é no sentido contrário que o artista Raul Leal produz os trabalhos aqui presentes. Em suas fotografias, o cenário se apresenta como um espaço de instabilidade: entre a aparição e a desaparição, o registro e o vestígio.

O limiar que separa os campos da prática artística e da vida cotidiana foram objetos de longa discussão nas artes visuais, sob os quais alguns artistas tornam-se partidários ao estabelecimento dessa separação, enquanto outros acreditam que a potência da arte se faz justamente no entrecruzamento dos dois campos. Frente aos desafios do Antropoceno (que designa o período social e histórico em que o ser humano domina o meio que o circunda, provocando alterações biofísicas em escala planetária), artistas como Raul Leal se inserem nesta segunda marcha, sob a qual a reconfiguração do sensível só é operada por uma prática artística que toque, comente ou, ainda, proponha uma ação direta no mundo. Em “Terra Vermelha”, a arte adentra o campo político: todas as imagens e processos que habitam esta exposição se relacionam diretamente com as transformações do território. Como maneira de abordar a questão, Raul produz fotografias que registram os impactos da ação humana na região, e, em seguida, as sobrepõe em placas de madeira. O processo resulta em imagens ruidosas, em que a aparição do material — a madeira — dialoga sobre sua própria extração e produção, um dos fatores que propiciam a crise ambiental local. Opera-se, portanto, uma alteração da semelhança.

Durante um longo tempo, a paisagem brasileira foi tema à serviço da construção de uma unidade cultural e identitária. Exuberante e esplendorosa em evocações ufanistas literárias ou plásticas, ela agora se vê à mercê de um desejo de ordem capitalista em que os recursos naturais são apenas um meio para a geração de riquezas. Frente a este desafio, a série “Ventania” constitui um conjunto de trabalhos que retratam cenas de resiliência botânica, que arduamente resistem a sucumbir. Estas fotografias são superpostas por estrias de madeira natural, cuja operação formal põe em disputa a presença em cena. A intervenção resulta em uma imagem que revela não só a beleza do bioma local, mas o perigo de sua perda.

Já na série “Rebento”, um conjunto de trabalhos fotográficos impressos em chapas de madeira figuram registros de mudas de árvores cultivadas pelo artista em áreas degradadas do Rio de Janeiro. São objetos que se apresentam como zonas de instabilidade, em que fotografias revelam buracos e rasgos em suas aplicações que dão a ver a textura da madeira, ao fundo. As falhas interferem na leitura das imagens, que retratam justamente a possibilidade de salvaguarda do bioma local. Os rasgos, por sua vez, dão a ver o seu produto exportação, a madeira, apontando para a ameaça ecológica que assola o território. Entre a impermanência da imagem e a irreversibilidade da ação humana, Raul busca transformar a denúncia em anúncio, propondo a criação de novas peças realizadas a partir do plantio de mudas nos arredores da sede do SESC-Campos. A exposição adquire, assim, uma configuração de laboratório/ateliê coletivo, encontrando na ação direta uma ponte entre a prática estética e a ação política.

Neste sentido, a exposição “Terra Vermelha” parte do problema de ordem ecológica que assola as regiões Norte e Noroeste Fluminense para propor uma prática artística que evidencie a urgência do debate em torno de um problema ecológico. A força da imagem revela aqui sua potência de convocar da reflexão à ação, impondo-se como uma ferramenta de transformação e agenciamento coletivo.

Lucas Albuquerque

https://issuu.com/raulleal/docs/catalogo_terra_vermelha_rev.pptx

Adubar o olhar

Daniela Name

Serrapilheira é o nome dado ao conjunto de folhas, frutos, lascas de troncos e galhos que formam uma espécie de tapete fértil no chão da floresta, alimentando as árvores que ali estão e aquelas que podem vir no futuro. Não foi um acaso Raul Leal escolher a palavra para dar título a esta exposição onde dois grupos de trabalhos são apresentados. Nas fotos sobre papel, o olhar recai sobre árvores, secas e solitárias, que se mantêm resilientes na natureza sofrida. Elas são testemunhas da agressão a uma paisagem longe dos eixos estratégicos de circulação. Já nas fotografias sobre madeira, Leal se dispõe a ser um “artista viajante”, e cataloga mudas de espécimes sobreviventes, que ainda podem reflorestar áreas degradadas.

Quando levamos em conta que a fotografia é um vestígio de ausências, de seres fantasmáticos, o que o artista parece propor, com a reunião desses inventários, é fazer uma serrapilheira a partir da latência das imagens e do recalque dos corpos vegetais. Nas séries que se acumulam no horizonte de nossos olhos, o chamado para que façamos dos mortos - e das imagens mortas que são matéria da arte - o adubo que pode transformar pensamento em atitude.

https://casafiatdecultura.com.br/evento/serrapilheira-na-piccola-galleria/

Nomes do Mato – Raul Leal


“Nomes do mato” faz referência aos nomes que os indígenas eram obrigados a abandonar quando eram batizados. Esses mesmos indígenas que perdiam seus nomes de família, sua referência como seres humanos no mundo, foram responsáveis por nos deixar a maior parte dos nomes das plantas e animais existentes no Brasil, nossa toponímia também é quase toda de origem indígena. Ao qualificar esses nomes indígenas como nomes do mato, fica bem claro o caráter pejorativo que sempre foi associado a tudo que era proveniente de nossas matas, basta lembrar que alguns anos atrás, plantas como bromélias, certas orquídeas e bananeiras decorativas eram vistas como plantas do mato, coisas sem valor. Hoje em dia essas espécies movimentam um próspero mercado de plantas decorativas que são exportadas para todo o mundo. Quando se vai remover a mata de alguma propriedade diz-se que a área vai ser limpa, como se a floresta fosse sinônimo de sujeira.

Nessa exposição os “Nomes do mato” são animais e plantas que ainda resistem em nossas matas, lutando para sobreviver em meio aos ataques sofridos pelo meio ambiente, através dos anos. Essa série de trabalhos teve início quando decidi utilizar a paisagem do interior como referência. Comecei a fotografar o interior do estado do Rio e me deparei com uma situação estranha, havia muita seca, muitas árvores mortas e muito pouca mata nativa. Comecei a pesquisar sobre o assunto e descobri que o Norte - Noroeste fluminense, parte de Minas e Espírito Santo estão vivendo um processo de desertificação. Desertificação é a degradação da terra por uma combinação de fatores climáticos e humanos. São três fatores que se conjugam neste processo, o primeiro é o desmatamento, o interior do estado do Rio originalmente possuía 100% de mata atlântica nativa, a mata virgem dos nossos avós, com o desmatamento para lavoura de café, criação de pasto e comércio de madeira chegamos a inacreditáveis 10% da mata original. Segundo as pesquisas a mata atlântica é um ecossistema que começou a se formar há 500 milhões de anos, em menos de cem anos nós conseguimos destruir 90% dessas matas que estavam aqui muito antes dos índios. O segundo fator que vem atrelado ao desmatamento são as queimadas que acabam com o resto de nutrientes da terra. O terceiro é o manejo equivocado do solo, a terra precisa da mata para ter uma reserva de matéria orgânica e se tornar produtiva, sem esse adubo natural que vem da decomposição de folhas e troncos, nem capim consegue vegetar na terra vermelha que se torna árida.

Mas o que tem isso a ver com arte? Os trabalhos que eu estou apresentando aqui foram realizados a partir da observação da nossa paisagem e dessas modificações. Utilizei madeira, terra e fogo para trabalhar com imagens de animais e plantas que ainda resistem nesses restos de mata, são animais que fazem parte da memória de todos nós. Mostro também um conjunto de fotografias e aquarelas que apresentam áreas devastadas e pequenas plantas que sobrevivem nesses clarões de terra vermelha e três pares de desenhos em grafite onde contraponho uma espécie de negativo/positivo de animais, baseados nos desenhos dos artistas viajantes que andavam pelo interior catalogando nossa riqueza natural. Os nomes do mato são a nossa riqueza, o verde ocupa a maior parte da nossa bandeira, esse verde que precisa tanto ser cuidado e preservado por ser fonte de tudo que nós conhecemos como Brasil.

http://rauleal.blogspot.com/2020/06/nomes-do-mato.html



Nada acabará, nada ainda começou - Isabel Sanson Portella


“Tenho tudo para ouvir e ver.
Ainda não sei nada. Leio livros para aprender.
Estou sempre apressada. Sou muito mexida.
Um dia quero uma coisa, no outro quero tudo.
Sofro de um problema de sossego.
Não sei o que é estar sossegada.
Mais tarde corrijo.”


O paraiso são os outros - Walter Hugo Mãe



Ao pensar a exposição de Raul Leal para a Galeria do Lago me deparei com os versos e músicas que um dia soaram pelos salões do palácio do Catete. Os banquetes, saraus e bailes que ali reuniram a elite carioca do inicio do século XX estavam, certamente, impregnados do espírito e das ideias vigentes na sociedade da época. Preconceitos e ousadias, estranhamentos e deslocamentos acompanhavam as inovações apresentadas. Movimentos de exclusão e segregação sempre surgiram em todos os tipos de sociedade, dificultando ou impedindo os caminhos da cultura popular. Dessa forma, questões envolvendo o legado musical brasileiro despertam os sentidos principalmente para situações onde construção e destruição se opõem. Nada acabará! Nada ainda começou! Passam-se os séculos e nada acabou. Continua o preconceito, a proibição, a exclusão. Será que nada ainda começou? Será que expressões populares autênticas ainda vão continuar a ser rotuladas, consideradas inadequadas ou impróprias?



A música faz parte do universo de Raul Leal, artista-pianista que escolheu Nair de Teffé e a sua ousadia no inicio do século XX como fio condutor para a exposição de sua arte.

Levantar questões, abrir caminhos para se pensar estranhamentos e exclusões ao longo dos séculos são propostas desse artista que trouxe para a Galeria do Lago, nos jardins do Palácio do Catete, obras que remetem ao mundo da música e suas expressões.

Catulo da Paixão Cearense e Chiquinha Gonzaga nos salões do Palácio do Catete nos primeiros anos do século passado: “expressão chula da nossa cultura”!

Ernesto Nazareth para estudantes da rede pública, século XXI: “achacado, rejeitado”!

Show “Tecnomacumba” em evento gospel, século XXI: “proibido”!

O que torna cada uma dessas situações um momento de reflexão? Que paralelos existem entre elas e como podemos criar um novo começo a partir desses entendimentos? Raul Leal coloca sua arte para indagar. E cada espectador irá encontrar a sua resposta. Cada um que parar diante das propostas do artista vai saber que a música, como arte maior, está acima de preconceitos e proibições. E então tudo irá começar!!! Novas respostas virão, novas atitudes, novos posicionamentos! Um recomeço com mais liberdade!

https://issuu.com/raulleal/docs/nada_acabar____nada_ainda_come__ou



Ilhas - Daniela Name



Sentia-se muito jovem e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma navalha através de tudo; e ao mesmo tempo ficava de fora, olhando. Tinha a perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um dia que fosse. [1].

É Mrs. Dalloway quem nos faz o convite para navegar pelas Ilhas de Raul Leal. Virginia Woolf inventou a personagem em 1925: socialite muito bem casada para os padrões de sua época, Clarissa Dalloway vivencia os incertos e assustadores anos do entre-guerras. O livro a acompanha na complexa tarefa de ir às compras. Ela circula pelas ruas de Londres escolhendo flores e procurando os ingredientes que faltam para um jantar formal em sua casa. Alterna estados de atenção: o foco na lista dos afazeres de uma boa esposa a mantém presa ao chão e ao movimento das ruas, fazendo-a constatar uma terrível solidão; já a entrada em um labiríntico estado de devaneio possibilita que a personagem e seu leitor devassem, juntos, alguns flashes do passado e de um possível futuro. Como numa ilha de edição, a memória permite retrocessos e avanços. Lembrar pode ser projetar ou se arrepender. Quando entra nesse estado de suspensão, pairando acima da rotina, Mrs. Dalloway faz furos randômicos na gaiola que a protege e a aprisiona, vivendo experiências que ultrapassam o congelamento superficial do presente.

E se Mrs. Dalloway fizesse suas compras nas paisagens pintadas por Raul Leal? Para início de conversa, ela não estaria nas ruas, mas em um dos ambientes artificiais que o artista recria a partir de fotos que tirou em shoppings do Brasil e de outros países. Como defende Zygmunt Bauman, os shoppings pertencem a um grupo de prisões voluntárias que temos criado. O teórico polonês vem estudando a vida cada vez mais líquida que levamos e a fluidez de nossas relações, que nos impedem de cultivar vínculos. Ele agrupa os shoppings aos reality-shows e aos condomínios fechados e seus circuitos de segurança – criamos grades que nos anestesiam e nos vigiam. Outro tributário do panóptico de Foucault, Jonathan Crary tem se debruçado sobre a comunicação depois da internet, a conexão 24/7 – 24 horas, 7 dias por semana -, que batiza seu último livro. Não é difícil aproximar a teatralização dos selfies, os não-encontros e não-debates performáticos virtuais com o isolamento identificado por Bauman. A hiperconexão é mais uma prova da desconexão de nossos tempos. Buscamos os ambientes fechados e a virtualidade também por medo do outro, e em casos extremos este receio se transforma em ódio e desejo de exclusão.

Se Mrs. Dalloway saísse para as compras em um shopping, talvez se sentisse “diferenciada”, protegida “desta gente” periférica, divergente e ameaçadora, mas certamente perderia a noção do ambiente que a cerca. Não conseguiria sentir o passar das horas e nem as alterações meteorológicas. Não ouviria as britadeiras da obra ao lado, nem sentiria cheiro de grama cortada; não veria carros, nem o colorido espetáculo de guarda-chuvas abertos; não esbarraria em nada, dificilmente seria abordada por alguém. Teria, portanto, bem mais dificuldade para abrir clarões de devaneio e de memória na anestesia do presente.

O interesse de Raul Leal é perseguir esses clarões. Para transformar seu trabalho em para-raio de memórias, o artista encarna um Doutor Frankenstein digital, se apropriando das especificidades da arquitetura dos shoppings e reorganizando elementos a partir de uma lógica de sampler. Se na história da pintura há relações evidentes entre cor, forma e música, não deixa de ser interessante notar que a arte contemporânea aproximou artistas e DJs, que trabalham com processos de apropriação e resignificação.

Leal é um pintor-pianista que domina com destreza um dispositivo importante em nossos tempos: os programas de manipulação de imagens. E é importante assinalar como as operações realizadas nestes softwares são semelhantes às da memória. Há apagamentos, enxertos, contrastes e brilhos provocados por decisões externas à imagem, do mesmo modo que podemos reinventar nossa infância, ficcionando a importância de determinado parente, ou mesmo lembrando um episódio esquecido a partir de um evento atual – um choque, um êxito –, que serve como ferramenta prospectiva, fazendo com que aquela fatia de passado ultrapasse a membrana da consciência e venha à tona.

Os shoppings-monstros de Leal-Frankenstein são feitos de fragmentos de espaço e tempo muito distintos, uma arquitetura de memórias estilhaçadas. A sensação de quem olha para essas pinturas recentes do artista pode ser a de que se está diante de uma paisagem extraterrestre, atualização pop do sentimento de exílio e não-pertencimento destacado pelos pintores e compositores românticos, como Caspar David Friedrich e Chopin, respectivamente. Este estado romântico de desencaixe e de certa paralisia diante da hostilidade do mundo é um elemento importante para o entendimento das Ilhas que Leal nos apresenta.

Em uma primeira mirada, de longe, cada tela-ilha parece ter a estabilidade de um instante congelado: a tinta acrílica é trabalhada como uma superfície aparentemente lisa; figuras humanas e os cacos de vitrines, lustres e escadas rolantes que compõem essas ruínas contemporâneas são pintados como silhuetas monocromáticas, quase carimbos.

De perto, no entanto, cada trabalho revela seus artifícios: os escorridos e as imperfeições próprias do fazer pictórico são deixados aparentes, se comunicando diretamente com as imagens ramificadas, espécies de infiltrações que Leal insiste em acrescentar aos seus ambientes. Se na já antológica tela Splash, de David Hockney, o movimento da água espalhada pelo salto na piscina furava a superfície quase fotográfica da pintura, no trabalho de Leal estas rachaduras (na imagem e na fatura) revelam a instabilidade presente em seus interesses formais e temáticos. Com elas, o artista transforma os shoppings em anti-totens, procurando levar essa redoma asfixiante e opaca ao estado de bolha de sabão: cápsula ainda fechada, mas de uma transparência díspar, furta-cor, prestes a se desintegrar a partir do contato com o mundo das coisas vivas, heterogêneas e em movimento.

Por ser um pintor da solidão e da incomunicabilidade que nos assola, talvez não seja um acaso Leal se interessar tanto por silhuetas. Apesar de sua aparência monolítica, elas são uma imagem que contém seu negativo, apontam para um estado de ausência, para algo que lhes foi suprimido. De mãos dadas com Mrs. Dalloway e com Virginia Woolf – a escritora também foi como um pássaro de olhos furados, que cantou alto, mas não suportou sua gaiola -, o artista expõe a dor das faltas e nosso estado de naufrágio. Das Ilhas, manda mensagens na garrafa, sem saber ao certo em que cais e em que tempo elas vão ser lidas.

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[1] A tradução de Mrs. Dalloway neste texto e na conversa com Raul Leal é a de Mario Quintana para a editora Nova Fronteira. O poeta gaúcho entendia bem de gaiolas e dos furos que precisamos fazer nelas: “Eles passarão, eu passarinho”.

https://issuu.com/daniname/docs/raul_leal_texto_cr__tico_daniela_na



Imagens de um mundo em suspensão - Ivair Reinaldim



No século XIX, europeus viram-se encantados pelas xilogravuras coloridas japonesas, as ukiyo-ês, cuja expressão significa “retratos do mundo flutuante”. Essas estampas simbolizavam imagens do cotidiano, imobilizadas no corte incisivo da madeira, e talvez guardassem o espírito cambiante justamente naquilo que as caracterizava enquanto exemplares de crônicas visuais num dado contexto histórico. Cabe logo ressaltar, no entanto, que as pinturas de Raul Leal não possuem uma relação direta com tais gravuras, como o que ocorreu, por exemplo, com os impressionistas e pós-impressionistas. Se uma aproximação de fato puder ser estabelecida, a mesma encontra-se no modo como o ambiente urbano é representado nas proposições visuais do artista, uma vez que suas formas parecem estar em constante suspensão – ou num equilíbrio sutil, prestes a se desestabilizarem –, mergulhadas numa temporalidade lenta, fluida e movediça, o que em si reforça a ênfase literal sobre uma possível aparência flutuante das imagens que essas pinturas sustentam.

Raul Leal elimina qualquer aspecto efervescente das cenas que concebe, sejam elas ocorridas numa praça, praia, avenida ou shopping Center, espaços tradicionalmente relacionados à dinâmica dos encontros e à potência das ligações interpessoais. Particularidade da sua ampla produção pictórica encontra-se no fato de que essas séries de trabalhos representam cenas congeladas – muitas vezes desabitadas ou com pouca evidência de presença humana – em íntima relação com sua gênese: o índice fotográfico. O artista captura imagens, enquadra-as, elege-as em meio à miríade de possibilidades oferecidas nas suas diligências visuais por esses espaços de predileção. Em seguida manipula, depura, recorta, modifica os ‘códigos’ fotográficos através dos ‘códigos’ dos softwares de edição. As evidências que aproximariam a imagem de seu referente passam então a ser completamente atenuadas, transformadas em parâmetro idealizado de paisagem, em substrato conceitual para a realização de cada projeto de pintura. Nesse trabalho de edição, o que interessa a Raul Leal é que a cena representada passe a existir enquanto espaço pictórico, embora mantenha na fina espessura da tinta aquela bidimensionalidade característica da imagem fotográfica, seja na sua impressão sobre a superfície do papel, seja na exibição no monitor do computador.

Nessas pinturas de superfície, tão delgadas quanto a espessura da fotografia e a espessura da estampa, os campos um pouco mais densos de cores constituem o conjunto de fragmentos que dão forma às coisas – às vezes mais dependentes do referente, outras, completamente autônomas –, partes que se relacionam entre si, articulam-se de modo a constituir uma imagem maior, insinuando, de algum modo, a possibilidade de reconstrução da cena capturada. Juntas, essas ‘formas’ movem-se lentamente, deslizam sobre um ‘fundo’ movediço, ralo, em que o pigmento agora aquarelado escorre de modo fluido pela superfície da tela. São nestes procedimentos mais acidentais, pouco controlados, em contraste com a precisão e constância das partes em evidência, que se desvela uma temporalidade lenta, representando o caráter efêmero tanto das coisas em si quanto do modo como são apreendidas subjetivamente. Essas imagens reforçam a impressão de vida em suspensão, de um mundo à espera da confirmação de sua existência. Elas vivem na imanência de existir para além de sua mera condição visual.

https://issuu.com/banco.portfolios/docs/raul_leal





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